Foto divulgação Dra Daniela Freitas

*Daniela Freitas

 

O termo “Cultura do estupro” começou a ser utilizado na década de 70, quando feministas americanas estavam promovendo esforços para a conscientização da sociedade sobre a realidade do estupro.
Em “Sexual Violence Against Women: Putting Rape Research in Context” (Violência Sexual Contra a Mulher: Colocando a Pesquisa Sobre Estupro em Contexto), a norte-americana Alexandra Rutherford, doutora em ciência e psicologia e especialista em feminismo e gênero, explica que antes do movimento feminista norte-americano levantar o assunto para a discussão, pouco se falava sobre o assunto e, mais ainda, acreditava-se que estupro, violência sexual doméstica e incesto raramente aconteciam.

Em 1974, o conceito cultura do estupro foi usado pelas feministas norte-americanas Noreen Connel e Cassandra Wilson em “Rape: The First Sourcebook for Women” (Estupro: O Primeiro Livro de Consulta para Mulheres). Foi uma das primeiras vezes em que o termo foi incluído em um livro. Naquela época, as autoras tinham a ilusão de que despertar o olhar para a cultura do estupro seria um modo de eliminar tal mal da sociedade.

O tema começou a ganhar mais visibilidade no ano seguinte, em 1975, com o grupo New York Radical Feminists (Feministas Radicais de Nova Iorque), que produziu palestras e conteúdo que inspiraram cineastas e escritoras.

Dentre os trabalhos produzidos merecem destaque o documentário “Rape Culture” (Cultura do Estupro), de Margaret Lazarus e Renner Wunderlich, e o livro de Susan Brownmiller, “Against Our Will: Men, Women and Rape” (Contra a Nossa Vontade: Homens, Mulheres e Estupro). Segundo Susan, existe o “uso de estupro como uma expressão da masculinidade, indicação de mulheres como conceito de propriedade, e como um mecanismo de controle social para manter as mulheres na linha”.

Por um lado, se homens estupram em nome da sua masculinidade, mulheres são estupradas em nome da sua feminilidade. A mulher, quando nega uma relação sexual, é vista como uma cockteaser (quem provoca o pênis, mas, na hora H, não quer aceitá-lo). E é aí que aparece a culpabilização. As vítimas de estupro aprendem a se sentirem culpadas. “Alguma coisa elas fizeram pra merecer isso”, é o pensamento dominante.

O pensamento que reinava até então – e continua reinando em diversos lugares, convenhamos – era de que a mulher poderia ter contribuído com o estupro, caso não tivesse tentado resistir. Então, a obra de Susan foi precursora em abordar o estupro como sendo uma forma de violência, poder e opressão masculina e não de desejo sexual. Ali, pela primeira vez em um livro, foi escrito o que o estupro realmente é: uma forma consciente de manter as mulheres em estado de medo e intimidação.

Estupro não é um crime relacionado a sexo ou desejo sexual. O estupro se refere a uma relação de poder: trata-se de um processo de intimidação pelo qual os homens mantêm as mulheres em um estado de medo permanente. A coação é feita criticando as mulheres que não aceitam se submeterem a essas regras e culpando as vítimas de crimes sexuais. Com medo de serem hostilizadas e violentadas, acabam se submetendo à autoridade masculina para evitar mais violência.

Quando a violência sexual torna-se algo usual dentro de uma sociedade, podemos usar o termo cultura do estupro para nomear tal abuso. É um conceito usado para indicar o quanto a violência contra a mulher é normalizada dentro da sociedade. A tolerância e a normalização acabam incentivando ainda mais as atitudes violentas. Entre os exemplos de comportamentos associados à cultura do estupro estão a culpabilização da vítima, a sexualização da mulher como objeto e a banalização da violência contra a mulher.

E aqui estamos falando do que é aceito como normal pela sociedade. Se você for mulher, tenho toda a certeza de que já passou por ao menos um episódio de abuso, seja na rua recebendo uma cantada, no transporte público com homens encostando em você ou mesmo dentro de um relacionamento quando a outra parte envolvida não soube aceitar um “não”.

O que caracteriza um estupro é o não consentimento de uma das partes, que é uma disposição mental nem sempre perceptível por um observador externo.

O combate a esse tipo de crime passa necessariamente pela educação e pelo entendimento do que significa consentir. É o entendimento sobre o que é consentimento, o que é limite, o que é respeito. As pessoas precisam de uma educação sexual adequada, que ensine a respeitar completamente as outras pessoas e que não exista essa diferença de poder em que um acredita que pode dominar o outro.

Assim, ao observar a nossa sociedade nos dias de hoje, podemos claramente enxergar como a cultura do estupro continua viva. Da mesma maneira que antes, hoje a sociedade ainda leva em consideração a maneira como a vítima está vestida e até mesmo sua vida e hábitos. Se a mulher está vestida de forma tida como provocante, isso é considerado um atenuante para o agressor. Se ela tiver vários parceiros, beber demais ou voltar muito tarde para casa, também.

No Brasil, a violência doméstica se destacou como foco no início do movimento feminista e das intervenções propostas. Tal mobilização se deu em função da brutalidade dos numerosos casos de violência conjugal, de um lado, e da impunidade dos agressores, de outro. Apenas recentemente a atenção se volta para outras formas de violência, como a sexual.

Um exemplo é que somente em 2002, a Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu a violência sexual como todo ato sexual não desejado, ou ações de comercialização e/ou utilização da sexualidade de uma pessoa mediante qualquer tipo de coerção. Ainda que a demora seja evidente, ações como esta, mostram como o debate sobre as relações de gênero têm aumentado e vêm trazendo debates significativos envolvendo as áreas psicossociais, de saúde, econômica, política, jurídica e cultural.

As mulheres vêm obtendo êxito na conquista de certos direitos sociais e progredindo em direção à igualdade de gênero. Mas a desigualdade, no entanto, ainda não foi totalmente ultrapassada, sendo um reflexo da tradição patriarcal da sociedade.

Uma coisa ainda é muito nítida: as mulheres não são vistas como seres com vontade própria, são consideradas propriedade dos homens. Cabe às mulheres obedecerem às regras masculinas – ser feminina, falar baixo, aceitar ser vista como objeto sexual pois “homem é assim mesmo”. E quem não aceita as tais “regras masculinas” é culpada por tudo o que lhe vier a acontecer.

O que é a cultura do estupro fomentada pela sociedade? Uma estrutura onde a mulher é culpada por qualquer constrangimento sexual que venha a passar. Uma sociedade que acha normal uma mulher ser constrangida na rua por uma cantada; normal uma mulher ser estuprada por estar bêbada ou usando roupas curtas; normal uma mulher ser forçada a fazer sexo com o companheiro, afinal, ele é seu marido ou namorado; normal uma mulher ser vista apenas como objeto para satisfazer as vontades alheias; normal uma mulher ser intimidada por homens heterossexuais quando é lésbica, porque na verdade ela tem que aprender a gostar de homem.

Precisamos de políticas públicas e de segurança pública pensadas sob a perspectiva de gênero, com normas combativas através da discussão absoluta sobre o direito da mulher, o que implica necessariamente serem feitas por mulheres

Por outro lado, é claro que os homens são bem vindos nesse debate, pois mesmo o homem que abomina o estupro não escapa a experiência própria de seu forte impulso sexual, e por isso tende a considerar que o estuprador é alguém que, dominado por tal impulso, não conseguiu mantê-lo sob o devido controle como qualquer homem decente faz, e então pecaria da mesma forma como um ladrão peca por não resistir a tentação do roubo.

Mas se convencido que o estuprador não age por impulso sexual, e sim pela perversão de humilhar e torturar a vítima, o atenuante desaparece, e aos olhos do homem normal esse criminoso se torna muitíssimo mais monstruoso, não merecendo qualquer forma de condescendência.

Os homens precisam abraçar essa causa, pois só assim vamos começar a diminuir esses índices de estupro. Definitivamente, não é com o aumento de pena que vamos conseguir. É histórico, o aumento da pena nunca reduziu crime algum e não vai funcionar com estupro.

As mulheres precisam ser atendidas em delegacias especializadas, com equipes preparadas aptas a acolherem essas vítimas sem julgá-las ou culpá-las no momento em que criam coragem para procurar a unidade policial, porque não é um depoimento fácil. É cediço que muitas vezes o estupro é cometido por pessoas de confiança da vítima, pessoas do seu relacionamento, do ceio familiar, do seu ambiente de trabalho, enfim, pessoas com quem ela convivia e tinha confiança. Isso causa uma dificuldade ainda maior para a elaboração do registro.

São muitos os relatos de mulheres que, em um primeiro momento, pensaram em fazer um registro de ocorrência, mas ao chegar na delegacia de polícia, ouviram perguntas como: como você estava vestida? porque você estava sozinha? você estava bêbada?. Muitas desistem de fazer o registro. É necessário que as mulheres se sintam acolhidas em nosso sistema de justiça para fazer esse tipo de denúncia, evidentemente respeitando a presunção de inocência, o direito ao contraditório, enfim a todo o devido processo legal.

É imperioso que nossas unidades de saúde trabalhando integradas com as delegacias de polícia, tenham muita sensibilidade, cautela e preparo, para receber as vítimas de violência sexual e orientá-las sobre todos os procedimentos que ela deve fazer, os medicamentos que deve tomar, os coquetéis de prevenção do HIV, a contracepção de emergência e fornecer a ela as informações sobre aborto legal, que independem de um registro de ocorrência.

Enquanto não se trabalhar a origem do crime sexual, os motivos que levam um homem a praticar este tipo de crime, o que efetivamente está por trás dessa prática, o que passa pela cabeça dele, como ele encara isso, porque ele acha que pode se apropriar do corpo da mulher, não iremos avançar na luta contra o estupro, na reincidência e evitar que novos crime sejam cometidos.

Daniela Freitas

Advogada em Direito de Família 

Pós Graduanda em Direito Penal e Processo Penal

Coordenadora do Grupo de Trabalho Maternidade no Cárcere na Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB/RJ

Presidente da Comissão de Direito e Mediação de Órfãos e Sucessões 

Membro da Comissão de Direito da Criança e do Adolescente OAB/Barra

Conselheira Adjunta OAB/Barra